Margens e Clareiras

Parque Augusta – foto de Klaudia Alvarez

Lado A, lado Z.

Dizem que São Paulo é quadradona, eu acho que é cheia de lados.

Já morei no lado de lá da Paulista, hoje moro no de cá, no Centro. Trabalhei tanto no lado de lá do Pinheiros, quanto no de cá, como a maioria. Já frequentei o lado de lá do Tietê, indo a shows e eventos no Anhembi e Campo de Marte, ao Velhão e ao campo de paintball da Cantareira, mas vivo muito mais no lado de cá.

Meu bairro favorito hoje, a Vila Buarque, onde caminhei muito com Deus Tupã na quarentena, é separada pelo Minhocão — e por isso tem dois lados. Muitas regiões da cidade são navalhadas assim, normalmente por obras viárias. Há quem odeie São Paulo por isso. Tá, é horrível mesmo, mas essas lâminas de concreto que rasuram a mancha urbana me trazem uma ideia de movimento. Como traços de Pollock.

Hoje estou finalmente lendo os Diários de Virginia Woolf e reconheço lugares, praças e ruas da Londres que ela cita em textos dos anos dez e vinte. Há mais de cem anos. Com São Paulo não é assim. Porque, apesar do concreto e por mais absurdo que pareça, ela é uma cidade orgânica, que muda o tempo todo. De um aglomerado de pequenas vilas no início do século XX a uma das maiores metrópoles do mundo neste início de XXI.

Recentemente fui ao encerramento de uma balada muito importante na cena indie paulistana, mas que com o tempo mudou de público. Deixou de atender o pessoal do indierock, que sempre esteve no nosso lado, para atender o pessoal do lado de lá, aquele que a gente não gosta, sabe. Essa gente estranha. Cidade orgânica.

São Paulo, apesar do vício no automóvel, no concreto e no asfalto, ou seja, no dinheiro, muda como um ser vivo. E também sofre como um, claro. Por isso vejo a metrópole como orgânica. Ela se adapta, melhora, evolui. São Paulo pulsa. Respira. Transpira. Inspira. E provoca também muita ira, claro. Porque destrói, implode e mata. Consome.

Frequento a Praça Roosevelt há muitos anos. Quer dizer, antes, lá atrás, frequentava só o lado da rua dos bares. Porque ninguém tinha coragem de cruzar a praça até o outro lado. Hoje, depois da reforma de alguns anos atrás, ela é um ponto plural e democrático de concentração de gente. É a sociedade viva, colaborativa e harmônica convivendo entre si, com suas autenticidades, diferenças e até oposições. Com a pandemia, foi ainda mais abraçada pelos moradores e é hoje parte do quintal de quem mora naquele lado do centro. Tem gente de sunga tomando sol ou bebendo cerveja numa tarde de segunda ou passeando com o cachorro numa noite de sábado — tem até gente com gato na coleira. Os artistas hispanos da Ocupação do Ouvidor cruzam para o lado de cá, até aqui no Centro Novo, e ensaiam e treinam na Roosevelt, do lado de quem lá passeia.

Quando eu ia na praça antes da reforma, às vezes eu estacionava no atual Parque Augusta, exatamente onde hoje é o parquinho das crianças. O lugar ainda não era um parque, mas um terreno com árvores e espaço para parar o carro. Porque o lado ganancioso estava se sobrepondo ao lado do interesse público da coletividade. Hoje, o parque é parte do jardim das nossas casas. Vou todo dia com Tupã. Mas também tomo sol de sunga deitado na canga, leio na rede no bosque e almoço no gramado com a marmita que levo de casa. Plural, democrático e vivo. Gratuito.

Quando vou para o lado de lá da Consolação, não para ir ao Sesc ou à livraria ou à praça do Rotary, mas para correr no Minhocão, encontro essa lâmina dividindo a Vila Buarque, completamente ocupada por gente, em vez de carro. É gente correndo, andando de bicicleta, patins ou skate, é gente treinando bandolim, vendendo quadro, fazendo pique-nique, é gente bebendo com amigos, lendo, pintando, jogando xadrez com aquelas pecas enormes, ou gente caminhando com os olhos (e o coração) nos enormes painéis de grafite — que um dia já foram propaganda. É uma galeria de arte. E de vida.

Aos domingos, quando corro por lá, ouço a gritaria da feira da Rua das Palmeiras se misturar com a música dos autofalantes que os moradores colocam nas janelas, virados para o lado de fora de seus apartamentos, e também se mesclar com o batuque dos vários sambas da região. Ouço passarinhos. A brisa batendo nas árvores que se erguem mais que o Minhocão. Só quem frequenta sabe.

Quando saio de lá, tomo coco sem camisa e vou almoçar na Ocupação Nove de Julho. A cidade está sempre cheia de gente.

O lado de cá de São Paulo virou uma cidade de praia. Todo mundo tem falado. Muita gente na rua, muita gente com pouca roupa, muita cadeira de praia, muito coco, muito açaí, muito biquíni e muita sunga. É o lado mais feliz de São Paulo. E o lado onde escolhi viver. Porque lá estou ao lado da minha gente, da nossa gente. Gente que é tudo e qualquer coisa. A gente é o que a gente quiser ser. A gente é livre. Gente que é feliz. É o lado de quem tira o melhor de cada momento e de cada lugar, gente que não precisa de muito pra sorrir, gente que vive mais em paz.

Uma hora, todo mundo têm de escolher um lado.

A gente só não pode nunca esquecer do lado para onde a gente nunca olha. Mas que o Centro esfrega na nossa cara. O lado que a maioria ignora. O lado esquecido. O lado que mais está sofrendo no Brasil de hoje. Que é o lado que o capitalismo sempre quer esconder. O lado da verdade. Esse lado de São Paulo é o lado de baixo. Da base. Da sociedade real. É o lado da maioria. O lado do Brasil que é sempre pisoteado e massacrado por aqueles que estão sempre do lado errado da história.

A gente não pode nunca abandonar o lado de quem é sufocado. A gente não pode nunca esquecer do lado de baixo da sociedade.

De que lados estamos hoje?

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