Margens e Clareiras

Print do vídeo do Instituto Moreira Salles

A Revolução Será Compartilhada

O endereço na Avenida Paulista mudou, mas a sensação de revolução e de um novo senso estético na arte não. Porque foi ali naquela rua, como há quase 100 anos, que vimos surgir agora — e mais uma vez — a faísca de um novo tempo. Mais precisamente ali no Instituto Moreira Salles, em que a artista Filipe Catto criou seu mais novo trabalho, o espetáculo de vídeo-arte “Metamorfoses”, lançado com delicadeza no último sábado.

O convite foi para um show virtual, as chamadas lives que tanto pipocaram na pandemia e salvaram não só muitos artistas da miséria, mas muitos brasileiros da depressão e do desalento. Mas o que Catto nos entregou enquanto diretor artístico como homenagem ao trabalho da fotógrafa Madalena Schwartz foi uma obra de arte acima de qualquer expectativa, que inaugura uma nova sonoridade e uma nova estética não só para a música brasileira, mas também como movimento de contracultura e comportamento, alinhado ao que de melhor vem efervescendo na cena da vanguarda paulistana — talvez das mais interessantes hoje no mundo.

Catto nos entregou um manifesto artístico que pede mudança e evolução, que enaltece e valoriza a metamorfose existencial, num transbordo de pureza, delicadeza e amor. Um convite para um novo estado de existir.

Não é de hoje que ela tem essa sede pelo novo e pela ousadia, mas talvez só agora a discografia heterogênea e inquieta da artista comece a fazer sentido para alguns. Ela nunca se contentou em ser mais uma, por mais que muitos tentassem colocá-la numa estante de produtos para venda. Como ela mesma diz, as pessoas costumam usar modelos antigos para traduzir o presente, com comparações e referências perdidas no tempo. Há uma pressa e um desespero para que cada artista novo ocupe uma gaveta já preenchida por um anterior, quando a arte na verdade vem também do referenciar, mas só quando essa homenagem desabrocha o diferente e o inédito. O autêntico e o real.

A meu ver, o mainstream dos últimos anos, em todas as áreas, se encheu de truques e maquiagens vazias, se fechando no que vende e no que gera clique, produzindo uma monocultura padronizada e insípida. Bastante desinteressante. Na música, quase tudo que chegou ao grande público se tornou mais do mesmo: um som agradável que funciona como trilha sonora das lojas Petz, mas que pouco surpreende. E que em nada traduz o fervor criativo que víamos até antes da pandemia nos inferninhos e festas do underground, ou nas poesias de um sarau como o da Cooperifa, ou nos textos de peças encenadas pelas ruas a céu aberto.

Não por acaso, esse projeto chega na semana exata em que Marisa Monte nos apresenta seu mais novo trabalho. Ela, a grande representante do auge da música brasileira do fim do século XX. Ela, o símbolo do mainstream popular, com seus especiais na TV aberta e turnês esgotadas, com suas canções maravilhosas e discos históricos. Ela, que soube unir o autoral ao comercial, se permitindo permanecer por mais de dois anos sem suas redes sociais. Ela, que construiu uma identidade própria resistente ao tempo, e que hoje nos abraça com um álbum que é uma ode à carreira dela e à nossa própria história pessoal, como uma coletânea dos caminhos percorridos ao longo de todos esses anos, como o fechamento de uma época.

Essa semana funciona, de forma geral, como o fim de uma Era, a efêmera e breve Era das Celebridades e seus cliques. O fim das batalhas vazias e rasas por atenção. O fim da necessidade desesperada por seguidores e curtidas. Funciona como o fim do século XX — na minha visão otimista e sedenta por arte. Porque, apesar desses roupantes de brilho, o mainstream acabou por se acomodar e se render ao algoritmo, se vestindo de uma aparência leve e insossa. E que nos trouxe à já citada monocultura em que tudo é igual e mais do mesmo. Chega.

“Metamorfoses” faz o inverso. Traz frescor e leveza. Vem com a apresentação de artistas que se montam sim, mas de referências artísticas, e que só o fazem em nome de sua própria essência. Não por acaso vemos Filipe montada logo de cara, mas aos poucos ela vai se despindo de roupas e perucas, revelando bastidores, toucas e presilhas, limpando maquiagens e visuais. Assim como Alma Negrot na performance “Invocação”, Filipe termina o espetáculo de cueca e camiseta, de cara quase limpa, tirando os olhos e os lábios maquiados, de cabelo despretensioso e desarrumado, cantando e dançando para a câmera como se acompanhássemos uma passagem de som na coxia do teatro. É uma live, uma intimidade verdadeira, mas artisticamente construída. Vemos Filipe erguendo as mãos aos céus, reverenciando o todo e o além. Porque na arte, o que mais interessa é a essência. E a essência é o que de fato compõe o artista.

Quando a essência é verdadeira e banhada em profundidade, a montação ganha sentidos e camadas, ganha peso e emoção, como se vê ao longo de toda a apresentação. E, no final, Filipe vem desmontada, sublinhando a verdadeira metamorfose necessária para que a gente evolua em nossas jornadas: o amor, da cabeça aos pés. E Filipe nos apresenta o amor à arte, à cultura queer, ao passado, ao presente e ao futuro, o amor a si mesma. Porque ao saltar dos anos 30 para os 70, com passagem pelos tempos atuais, a artista mostra que devemos sim reverenciar aqueles que nos abriram portas, mas não necessariamente precisamos fazê-lo de forma submissa ou excessivamente majestosa.

Nosso presente, aquele que realmente é de vanguarda, pode e deve ser valorizado como o nosso passado, porque um não existe sem o outro. Hoje, um não nos interessa sem o abraço ao outro. E é esse presente que já a partir de amanhã será reverenciado e servirá de norte e inspiração para novos artistas. De certo modo, finalmente a música brasileira parece se livrar das amarras e do peso dos medalhões do passado.

Nesse sentido, vemos uma generosidade da Catto ao criar e abrir portas para que a arte de vanguarda de uma Alma Negrot sincronize com a de um Ciro Barcellos, por mais diferentes que sejam. Que a força de uma Maria Alcina harmonize com a explosão da própria Filipe. Vemos a mesma essência transgressora e libertária em diferentes roupagens e épocas. Vemos o mesmo amor da cabeça aos pés.

“Metamorfoses”, apesar da liderança da Catto, é esse trabalho coletivo em que um conceito é explorado à exaustão, e em que cada artista, seja protagonista ou de bastidor, tem sua oportunidade de brilho e de contato com o sublime. É o futuro compartilhado, que derruba do pedestal a celebridade perfeitamente erguida, abrindo espaço para o simples sem ser simplório, para o refinamento sem ser pedante. Como Filipe já havia nos mostrado no histórico projeto “Love Catto Live Deluxe”, é possível ser elegante sem restringir o acesso, é possível ser ousada sem afugentar o cidadão médio. É possível ser artista mesmo enfrentando o erro e a imperfeição. Com beleza, amor e arte.

Hoje, vemos que quem ficou para trás foram os acomodados, os preguiçosos e os desestimulados. Aqueles sem pretensão artística, presos a um binarismo que é a base do patriarcado. Pessoas que ainda insistem em viver a podridão do século XX.

Há artistas que já vivem no futuro. Pessoas que já experimentam novas existências. Que realizam seus sonhos enquanto vivem, desfrutando de desejos existenciais de liberdade, luz solar e êxtase. De que mais a gente precisa?

O modernismo atual é essa metamorfose, é a coragem de abandonar o estado simplório para passar pelo processo de autoconhecimento proporcionado por meses de confinamento, para então, mesmo com certa dor, abrir as asas e voar pela manhã sob o encantamento de nossa natureza verdadeira. É se jogar ao infinito, sem temer o desconhecido ou o incerto.

A saga de Filipe, que começou dramática, mas esquematizada, que se iniciou perfeccionista, porém de certo modo padronizada e binária como um grande tango argentino, agora encontra a liberdade do meta-melodrama latino e múltiplo, onde uma heroína, ora vilã, se adapta ao que há de mais verdadeiro, e assume finalmente seu eu mais profundo, numa metamorfose que já nos prepara para novos caminhos e novas experiências, que hão de chegar a todes, porque é um movimento generalizado que não tem mais volta. São os novos tempos.

Por tudo isso, para mim, “Metaformose” já é histórico. Já é um marco. Inaugura uma nova estética, uma nova Era cultural, banhada no amor queer, na liberdade humana e na emoção mais verdadeira. Chorei, revi, chorei e revi mais uma vez. Porque obras históricas são para serem degustadas em seus momentos de nascimento, quando ainda trazem o frescor da juventude. O doce perfume do novo.

“Metamorfose” é esse marco, uma obra de alto nível técnico e artístico, mas com a despretensão de quem quer apenas se divertir ao lado de outros grandes artistas, entregando — mais à sociedade e ao futuro do que só ao público — o que todos ali sabem fazer de melhor.

Bem vindes, o século XXI já começou.

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