
Nise da Silveira nasceu em Maceió, AL, no dia 15/2/1905 e aos 16 anos de idade foi aprovada na Faculdade de Medicina onde era a única mulher entre mais de 150 alunos. Revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil, utilizando a arte e a interação dos pacientes com os animais no lugar das verdadeiras “torturas” até então usadas com os doentes mentais. Seu trabalho chamou a atenção de ninguém menos que Carl Gustav Jung, com quem se correspondia e em cujo Instituto foi estudar. Em sua longa e proveitosa existência deixou um legado de afeto e humanização na área da psiquiatria.

Gonzaga Leal, cantor e compositor pernambucano conviveu com a Dra. Nise por vários anos e, com a devida permissão, publicamos aqui um texto dele sobre a amiga e psiquiatra revolucionária.
“Nise da Silveira, a mãe dos nossos sonhos.
Gonzaga Leal
TíMIDA, SEMPRE A ESQUiVAR-SE, como a se escusar de tomar espaço, foi como o escritor alagoano Graciliano Ramos a descreveu.
Figura delicada, gestos comedidos, olhar atento, à primeira vista Nise da Silveira pode parecer frágil, tímida ou, simplesmente, a mulher afetuosa dos nossos sonhos.
Mas, basta que comece a falar pensando cuidadosamente cada palavra e eis que se revela o que dela diz o bibliófilo José Mindlin: “é uma eterna caixinha de surpresa”.
Nise atravessou o século XX coerente com o que sonhou desde pequena — apaziguar o sofrimento humano. Através de sua sensibilidade extrema aliada ao rigor científico, ela era uma daquelas mulheres sobre as quais se costuma dizer que estava à frente de seu tempo.
Nise conciliava ternura com firmeza de convicções. E foi baseado nessa percepção que o psicanalista Hélio Pelegrino cunhou o apelido que melhor a definiria: Anjo Duro.
Meus encontros com Nise foram inúmeros. Alguns dos quais, gravados em fita k-7 com sua devida autorização. Cada encontro se revestia de grande intensidade e delicadeza. Na sua grande maioria, a partir das 17 horas. A hora em que tomava chá. Chá de canela com torradas. Era nesse horário que recebia os amigos.
Posso vê-la sentada de forma silenciosa à mesa, protegida sempre por um xale que lhe conferia uma impressão de nobreza, não raro com um gato a repousar sobre seu colo.
De cada conversa que tinha com Drª. Nise, ficava sempre a impressão de que o seu centro ativava o centro da outra pessoa, como se pudesse traduzir com perfeição o ditado zen: “onde o mestre passa sempre nascem flores”, ela era verdadeiramente um mestre no sentido oriental, as coisas vinham até ela, sem que precisasse fazer esforço.
De cada encontro, saía engrandecido, sentindo um secreto orgulho de partilhar com ela a mesma condição humana, o que me obrigava a ser mais exigente em relação a mim mesmo, como se me dissesse: “E você, o que está fazendo?”. Nise era uma dessas pessoas raras. Grandeza como ser humano, enorme capacidade de doação, fina sensibilidade, vasta cultura, inesgotável força de trabalho: eram muitas as qualidades que faziam dela uma especial pessoa.
Nise não perdia tempo em comentar desvarios dos sãos. Miúda e aparentemente frágil, costumava dizer que tinha “um Virgulino Lampião debaixo da pele” Aprendeu cedo a dizer sem medo aquilo que pensava. Falava suavemente, mas dizia tudo. Por isso foi parar nas masmorras de Getúlio e Felinto Muller.
A veneração que Nise sentia pela vida estendia-se a todo ser vivo, tendo os gatos um lugar de destaque. Ela era adorável…, mas dona de espírito contestador e revolucionário. Nise era daquelas pessoas que tornavam menos dolorosa a existência humana, uma desconcertante mulher. Ela questionou a fundo a prática psiquiátrica, muito antes que Szasz, Cooper, Goffman e Baságlia encetassem suas críticas ao manicômio, quando ainda predominavam resquícios de eugenismo no Brasil. Nise compreendeu as razões históricas que engendraram o manicômio, partindo de uma leitura correta e abrangente de Marx, aprofundada mais adiante com Foulcault. E não parou aí. Compreender seus pacientes exigia muito mais. Era importante atrever-se, tanto quanto possível ao dentro. Tentar o contato, Desenhar a mediação.
Carlos Drummond de Andrade em 4/1/1975 no Jornal do Brasil assim se refere a Nise:
“Seu serviço de Terapia Ocupacional abriu caminho para a interpretação de valores obscuros, em potencial no espírito atormentado: o caminho da criação artística. Sem pretensão de formar criadores no sentido oficial da disciplina estética. Sem querer aumentar o catálogo de nossos pintores, escultores, gravadores. Nise interroga o inconsciente e consegue que dele aforem as representações artísticas espontâneas, prova de que nem tudo em seus autores é caos ou aniquilamento: perduram condições geradoras de uma atividade bela, a serem devidamente estudadas visando ao benefício do homem futuro, tornando mais transparente em suas grutas interiores.
Desconheço outro livro de “psiquiatria” tão intenso e admirável quanto o Imagens do Inconsciente, aliando a um só tempo rigor e intuição. Nele, Nise faz a opção do caso clínico pela biografia. Abandona o prontuário e recorre ao diálogo, cheio de riscos e, no entanto, mais caloroso e mais próximo. Despreza o etiquetamento das doenças mentais e reequaciona os “estados do ser”, No universo das imagens, a Drª Nise, como costumava chamá-la, segue a aventura da unidade; infinita para Spinoza, árdua para Jung, dramática para Artaud.
Então, quando a consciência submerge em noite densa, quando tudo parece perdido, para Drª Nise perdura o fio sutilíssimo da unidade. Quanto a isso Artaud é certeiro: “ter o sentido da unidade é ter o sentido da anarquia e do esforço para reduzir as coisas, reconduzindo-as à unidade”.
Esse era o percurso de Nise da Silveira. Antônio Calado assim escreveu sobre ela: “Um dia há de sair uma biografia de Nise da Silveira, que é foco perfeito para o entendimento de uma época, um espírito precioso, bem lapidado, a refletir em muitas facetas um período tormentoso da vida brasileira”.
