Ouvir com os olhos – por Nirton Venancio

Já é outono. As temperaturas tendem a baixar e o clima fica ideal para a sala de cinema. A profissão de “lanterninha” não existe mais há muito tempo, mas a figura do profissional que vinha com sua lanterna, clareando o caminho na sala escura para que a gente achasse nosso lugar, ficou eternizada na memória dos cinéfilos mais antigos.  Provavelmente essa figura inspirou o título da nova coluna aqui do site que se chama: Lanterna Mágica. O titular dela é Nirton Venâncio, multi talentoso cearense que aceitou nosso convite para vir somar e, mensalmente, trazer um artigo sobre uma de suas grandes paixões: o cinema.

Como o foco de todas as nossas colunas é Filipe Catto, razão primeira da criação deste site, mesmo que ele não seja citado diretamente, o universo dele, por onde ele transita e o que curte está implícito em todas as nossas colunas e seções. Sem mais delongas, vamos sentar em alguma poltrona confortável e curtir o primeiro texto da coluna “Lanterna Mágica”! Mais uma vez agradecemos ao Nirton Venancio por dedicar um pouco de seu precioso tempo para vir colaborar com a gente. (Klaudia Alvarez)

O cantor de jazz, foto Warner Bros
Foto: Warner Bros.

OUVIR COM OS OLHOS

“O cinema falado é o grande culpado da transformação…”, apontava o Noel Rosa em Não tem tradução, de 1933.

O compositor, com a canção, criticava a mudança de comportamento que o país atravessava naquela década, marcado por forte processo de colonização cultural europeia, enquanto o cinema norte-americano falado acrescentava forte influência nos costumes nacionais. Noel, de uma maneira pueril e ufanista, expunha sua insatisfação dizendo que “o malandro deixou de sambar, dando pinote / na gafieira dançar o foxtrote…”. Com sua genialidade, ironizava: “amor lá no morro é amor pra chuchu / as rimas do samba não são I love you…”

Seis anos antes da sintomática composição de Noel Rosa, exatamente em 21 de janeiro de 1927, foi apresentado em Nova Iorque O cantor de jazz (The jazz singer), o primeiro filme falado, com diálogos e músicas sincronizadas com um disco de acetato. Dirigido por Alan Crosland, o filme deu largada ao cinema literalmente audiovisual. Deu o que falar.

A citação de Noel ilustra bem o que aconteceu, em um contexto universal, com a passagem do cinema mudo para o falado, ou, digamos, sonoro, pois o que se passou a conceituar como “som” é o conjunto afinado da fala, música e ruídos, ou em uma definição contemporânea, efeitos.

Naquele começo de século, e ainda diante o espanto do nascedouro de uma arte inusitada, as opiniões foram extremas com a introdução de mais um sentido na invenção. Críticos puristas diziam que o único cinema verdadeiro foi o mudo, em contraponto a vanguardistas que defendiam como um aperfeiçoamento técnico, como na sequência histórica seriam a cor e as larguras de tela.

De fato, o cinema mudo tinha uma certa pureza narrativa por determinar na imagem propriamente dita, o entendimento dramático de uma história. Com poucos ou muitos diálogos que se via, mas não se ouvia, cabia ao diretor conceber a ação não como se fosse para o espectador “surdo”, mas para uma plateia que “ouvisse com os olhos”, que criasse uma empatia entre o real e o imaginário, entre a vida e a ilusão – entre o homem e o cinema.

A arte cinematográfica nos seus primórdios do silêncio ao Sensurround que hoje conhecemos, não são duas artes inflexíveis uma à outra. É uma arte homogênea que cresceu e evoluiu, como naturalmente é o mundo, como impreterivelmente é a vida. O que se deve sustentar é a utilização adequada que se faz de tais recursos que se desenvolvem e avançam em linguagem. O som no cinema se incorporou à imagem de forma orgânica e necessária. E um filme atinge ou se aproxima da perfeição quando utiliza os elementos tecnológicos explorando as possibilidades, mas considerando as limitações para que não cai no excesso, em detrimento das colocações conceituais. Antes, um filme mudo, mesmo com o método narrativo de cartelas com os diálogos ou execução de um pianista ao lado da tela na sintonia das ações, provocava as reações pela quantidade das imagens e inferência do som, da palavra. Hoje o cinema se determina e provoca reflexos no equilíbrio do que se vê e do que se ouve, do que se deduz e do que não se escutou.

Por natureza, no cinema a imagem não ilustra a palavra, mas a substitui. Da mesma forma, podemos dizer que a fala não descreve uma ação, mas a incorpora. Uma cena ou sequência muda em um filme, seja de fala ou música, é imagem e é também som, porque o silêncio é sempre a expressão do que aconteceu ou do que se sucede.

E aqui cabe afirmar, como uma analogia de iniciação e aurora, que o cinema como expressão audiovisual que já se sedimentou há décadas, é como uma criança que mais do que aprendeu, precisou falar. Ou mais propriamente, precisou ser ouvida tanto quanto vista.

Parafraseando Noel, o cinema falado é grande responsável por essa educação.

(Texto de Nirton Venancio)

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