Margens e Clareiras

📷 Adrian Armstrong – África do Sul, 21/12/20

2020/2021

Herdei uma roseira, a roseira do nosso querido Ricky Scaff, que nos deixou neste ano que termina. No pé da roseira, ele mantinha — e eu mantive — a imagem de Santa Terezinha de Lisieux, a santa que abraça rosas.  A roseira do Ricky — hoje minha e nossa — é de rosas brancas. Ao menos, as poucas que sobreviveram às dentadas das gatinhas se mostraram assim. Brancas.

Nunca tive roseira, desconhecia totalmente o ciclo dessa planta, e tive de estudar e aprender detalhe por detalhe. Não sabia que a roseira cresce e floresce só quando a poda é bem-feita. Não qualquer poda, é preciso podar o tempo todo, principalmente quando nasce a rosa. Esse galho deve ser cortado antes que a flor morra, pra que possa dar novas flores depois. Você mata a vida pra que nasça mais vida depois. A morte trabalhando em prol do renascimento.

Uma vez por ano, em julho, é hora da poda radical. Ela transforma o enorme arbusto num toquinho seco e sem folhas, do tamanho de uma régua de escola. Parece morto. Mas se a poda radical não for feita, você não verá UMA rosa sequer na sua roseira. Vai crescer toda torta e desgrenhada. Se crescer. Qual o propósito de uma roseira sem rosas?

Ao lado da roseira, tenho um hibisco. Esse sempre floresceu, agora com muita dificuldade por também ser vítima das gatinhas. Mas não foram elas que mataram meu hibisco, foi alguma praga que, em uns poucos dias, corroeu e desfolhou toda a planta que eu adorava. Fiquei de jogar fora e plantar uma nova naquele vaso, pensei em manjericão, mas deixei pra depois. A gente costuma fazer isso, né? Deixa tudo pra depois…

Acabei me infectando com o corona vírus, provavelmente no 2º turno da eleição, e, por mais que não tenha precisado de hospital —tive todos os sintomas possíveis da COVID-19, menos a temida falta de ar —, acabei por ver a morte de perto. Mais uma vez, dei de cara com ela neste ano. Não foram momentos agradáveis, claro que não. Viver uma pandemia e se infectar sem plano de saúde não é pra qualquer um.

Já curado, me deparei com meu hibisco recheado de folhas esverdeadas e vívidas, imponente e promissor. Ele sobreviveu sem mim. E a roseira também.

A gente é a roseira que precisa ser aparada o tempo todo e sofrer uma poda mais radical de tempos em tempos. A gente também é o hibisco, que quando morre encontra forças pra renascer. É a gata que arrebenta tudo aquilo que quiser — todos temos o poder da destruição. E a praga que corrói o que antes florescia.

Só que a gente não se lembra de quem foi antes de ser quem é hoje. E nem sabe quem vai ser num próximo depois. Somos tudo e somos todos, antes, agora e sempre.

Ricky esteve aqui como Ricky Scaff, o mago, o bruxo, o antropólogo de almas, e se foi. Se mantém na memória e na lembrança, ainda escuto a voz dele na minha cabeça, a risada também. Mas, pra mim, a morte é sim um fim, o fim daquilo que existiu daquele jeito, com aquela cara, com aquela mente, por mais que seja reabsorvido e transmutado numa nova vida, por mais que decole pra um outro plano, jamais será de novo aquele que existiu daquela maneira específica.

Tudo termina. E a gente vai terminar também.

Essa energia que somos, e que já nos fez ser outros e que também nos fará ser mais alguns, pode até se lembrar de todas essas vidas quando está lá naquele outro plano, mas, naquele instante, acumula tanto conhecimento, tanto aprendizado, de tantas e tantas vidas, que nem de perto se parece com quem a gente é hoje. É, sem ser. Não é. Nunca mais.

Essa mente da existência atual, a que cuida e aprende com a roseira, a que protege o hibisco das gatinhas e a que vê simbolismo na imagem de Santa Terezinha, essa alma chegará ao fim, como tudo no universo. Com nosso jeito muito particular de pensar, de se preocupar, de temer e de sonhar, a gente também um dia vai terminar.

Encontrar o fim não é uma escolha. E tudo bem. É assim que funciona, e assim será.

Essa é a nossa chance de existir e florescer rosas brancas ou hibiscos vermelhos, de ter uma roseira com a imagem de Santa Terezinha e, um dia, deixá-la de herança para alguém que também tirará lições de uma relação de cuidado, amor e proteção.

Outro dia vi o print no Whatsapp de um jovem que não conhecia Chico Buarque. Disse: “aquele cantor de MPB… da capa triste e feliz… de olho azul…”. Foi isso que restou de Chico Buarque, um meme de Internet.

Por mais incrível que seja, tudo termina e um dia cai no esquecimento. Pode ser em um ano, em um mês, ou em cem ou mil. Uma hora, tudo vira pó e nada. Tudo volta ao todo. Tudo vira tudo. O cosmos inteiro no seu jardim. Tudo encontra seu fim.

A vida não é permanência, jamais foi sobre eternidade. A vida é existência, é sobre viver e estar aqui e agora. Não à toa, os gênios disseram “let it be”. Não à toa, nosso amigo deixa tanta saudade.

Então exista de verdade, viva o presente e o agora, viva todas as suas potencialidades sem medo, mesmo que seja num ano de pandemia e quarentena. Se esse foi o ecossistema que nos foi dado, o jardim onde fomos colocados, que aproveitemos tudo de possível. Que tentemos ao menos nos livrar das dentadas das gatas e aproveitar a água e a atenção, mas também a poda frequente e a radical que o universo vem nos obrigando a sofrer.

Assim é. E assim será. Enfrentar sempre, para superar com paciência.

Feliz Aniversário, Ricky. Obrigado, 2020. E feliz 2021.

(Daguito Rodrigues)

3 Comments

  1. Ricky 🌹 Eu tenho roseiras no meu jardim e não sabia nada dessa poda radical… Aprendendo com você por causa dele ❤️ ainda…

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