Margens e Clareiras: Mochilas

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📸 jbobo7/Flickr/Creative Commons

As mochilas: já viu? Já viu as mochilas? Eu sei que aqueles que dormem nas ruas não tinham nada. Não tinham mochilas, eu lembro. Mendigos, diziam. Indigentes, eu sei. Isso era antes. Sem-teto. Os que dormem nas ruas hoje têm mochilas. Mochilas enormes. Carregadas de coisas. Coisas que até pouco tempo estavam em casas. Armários e gavetas. Casas que eram deles. Quartos alugados, pagos com salários que antes eles tinham. Empregos. Não têm mais. Têm apenas mochilas. Mochilas carregadas de coisas. Coisas que hoje são tudo o que têm. Tudo que tinham! Quase nada. Já não têm mais nada além de mochilas. E dos cantos das ruas. E do asfalto molhado. Das noites nuas. E das mochilas numa vida crua. O que carregam nas costas não são só mochilas. São casas. São o peso de uma escolha. De um Brasil que só dá o peso da dor sem cor. Sem peso na consciência. São só mochilas. Coloridas ou pretas. Pesadas. Pretas, sempre negras. Mochila nas costas — e andar por aí. Mochilas sem sonhos, mochilas sem nada. Só coisas. Coisas que até pouco tempo estavam em casas. Armários e gavetas. Coisas que carregam mochilas. São coisas, são coisas carregando mochilas. Já viu? Já viu quem são essas coisas carregando as mochilas? Que coisa, ontem roubaram minha mochila. Tenho outras mochilas, lembrei. Outras coisas, também. Mas são mochilas sem nada. Só isso. Já viu? Já viu que não tem nada na sua mochila de coisas? Que tem uma coisa carregando a sua mochila. Que não tem nada. Já viu que você não tem nada? Que quando vemos coisas carregando mochilas já não somos nada. Já viu?

(Daguito Rodrigues)

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