Papo Afinado: Ciro Barcelos!

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“Se a arte não se prestar ao seu verdadeiro papel que é informar, transformar, ela fica sendo apenas uma prática de exibicionismo” (Ciro Barcelos)

Ele é coreógrafo, ator, bailarino, diretor, mas já escreveu um livro e gravou CD. Passeia por vários campos da arte, sempre com talento e competência. FCEF teve o prazer de conversar com CIRO BARCELOS, gaúcho de Porto Alegre, libriano (de 27/9!) e integrante dos DZI CROQUETTES há 45 anos. Aqui um pouco da história tão rica desse grande artista brasileiro.

FCEF – Ciro, grande prazer de ter você aqui e obrigada, mais uma vez, por sua disponibilidade. Lá do comecinho. Como foi que você descobriu a arte?

CB – A arte que me descobriu. Desde 5 anos, lá no Rio Grande do Sul eu já tocava gaita, sanfoninha. Meus pais me incentivaram, eu fui me especializando em acordeom, em música. Com 8 anos eu já fazia teatro na garagem da casa da minha avó. A arte me escolheu. Foi um processo muito natural.

FCEF – De Porto Alegre você se mudou para o Rio de Janeiro. Como foi?

CB – Me mudei com meus pais para o Rio quando tinha 8 anos de idade. E lá passei a desenvolver mais ainda essa parte da arte. Com 12 anos já fazia figuração em novela da Rede Globo! Quando eu tinha 15/16 anos meu pai foi transferido de volta para o sul, mas aí eu já estava integrado naquele ambiente de arte. Foi quando o musical HAIR passou por Porto Alegre. Fiz o teste, passei e vim pra São Paulo com o espetáculo. Logo depois dessa temporada conheci o Lennie Dale (bailarino americano que morava no Brasil). Fui pro Rio de Janeiro com ele e comecei a estudar dança. Cerca de um ano depois montamos o Dzi Croquettes.

FCEF – E como seus pais encararam isso? Foi fácil?

CB – Claro que não. Essa audição pro Hair nem foi em Porto Alegre. Foi em Curitiba e saí fugido para fazer o teste. O Hair era muito avançado pra época. Na temporada em Porto Alegre logo veio a notícia que eles tinham sido presos. Era um elenco de jovens ainda, mas pessoas como Sônia Braga, Armando Bógus, Nuno Leal Maia. Imagina o que era para os meus pais eu me misturar com aquela “hippaiada” toda na época. Fui pra Curitiba sem eles saberem, fiz o teste para o elenco, passei e voltei para Porto Alegre para fazer minha emancipação, pois eu era menor de idade. Aí conversei com a família toda e expliquei que aquele era o meu caminho e fui embora!

FCEF – Lennie Dale. Figura importantíssima na sua história profissional e também na de Elis Regina. Fale um pouco mais sobre ele.

CB – Desde bem jovem eu era fã de Lennie. Assistia ele dançando na televisão. Sempre fui louco por ele. Lennie e Elis Regina, minhas duas referências artísticas. Eu o conheci quando estava em temporada com o Hair aqui em São Paulo. Ele veio fazer um show e um amigo em comum me levou para assisti-lo. Foi no Teatro Maria De la Costa. Fomos ao camarim e já fui falando que queria fazer aulas com ele. Ele me disse que estaria no Rio e que se eu quisesse poderia me dar as aulas. Terminou o Hair, eu fui para o Rio, e depois de quase um ano tendo aulas com ele, surgiu o convite para conhecer a turma que estava montando os Dzi Croquettes. Eu entrei e ele veio em seguida.

FCEF – Como foi a vinda de Lennie Dale para o Brasil?

CB – O Lennie sempre foi um bailarino ímpar. Trabalhou com musicais da Broadway. Era excepcionalmente bom. Chamava muita atenção. Ele resolveu colocar a mochila debaixo do braço e sair dançando pelo mundo. Sozinho. Ele estava dançando em Las Vegas, quando o empresário brasileiro, Carlos Machado o viu e o contratou para estrelar um espetáculo no Rio. Ele veio, se apaixonou pelo Brasil, Copacabana, Beco das Garrafas. Ali conheceu Elis e começou a história toda dele. O americano mais brasileiro que já se viu. Quando eu conheci o Lennie tive acesso ao pessoal da música, à Elis. Eu comecei a dança com Lennie, mas meu propósito inicial era a música.

FCEF – A concepção dos Dzi foi do Lennie?

CB – Não, a ideia foi de Wagner Ribeiro. Ele que escreveu o texto. A história de uma família de mulheres apresentada por homens. Lennie quis conhecer e uma noite fomos, eu, Gal Costa, e o Lennie, para Santa Teresa, para a “Embaixada de Marte” e eles adoraram o Wagner. Ele era ator, meio profeta e queria criar algo novo, que driblasse a ditadura. Ele tinha escrito esse texto. Era uma peça de teatro, não tinha dança. Animus Animas Animatus Est era o título. Quando Lennie chegou, leu o texto e começou a ter ideias, dizer que daria para encaixar danças ali. Era a época de estreia do filme Cabaret, que ele gostava muito. E pensou em fazer algo naquele estilo. Começou a dar aulas de dança para todos. Aí, o que deveria ser uma peça de teatro se transformou em um show. Lennie misturou tropicalismo, a visão de um americano no Brasil. E tinha o profissionalismo dele. As pessoas não acreditavam que a gente ensaiava oito horas por dia. E o nome DZI veio da pronúncia de This, These do inglês. E Croquettes, porque quando veio a ideia estávamos em um bar, comendo bolinho de carne! E foi por causa de Lennie que surgiu. Senão seria mais uma peça de teatro, e não teria a grandeza que teve e chegado onde chegou.

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Elenco original dos Dzi com Liza Minelli

FCEF – O Dzi estreou, fez muito sucesso, principalmente aqui em SP, mas logo vocês tiveram que ir embora do país por conta da ditadura. Como foi isso?

CB – Eu fui para o exílio e quando cheguei na Europa descobri a dança moderna, contemporânea. Fui estudar na Ópera de Paris. Aí me decidi pela dança. Balé clássico. Aí voltamos ao Brasil, mas houve a ruptura dos Dzi na Bahia. Eu e Lennie resolvemos voltar para a Europa. Eu era assistente dele. Em Paris fiquei casado com uma modelo alemã e fazendo audições em companhias de dança. Fiz experiências com Pina Bauch, Maurice Bèjart, grandes companhias de dança moderna. Aí trabalhei também cantando, fiz shows, cantava MPB. Em seguida, 1980, por aí, eu fui para a Espanha. Fui dirigir a casa noturna Crazy Horse, em Barcelona. Me apaixonei pelo país e comecei a estudar flamenco. Eu já tinha me separado da Christiana nessa época e resolvi voltar para o Brasil. Logo que cheguei fui contratado pela Globo e comecei a fazer as aberturas do programa Fantástico, coreografar os programas musicais. Fiquei um bom tempo por lá e fundei a minha própria companhia: o Ballet do Terceiro Mundo. Fizemos vários espetáculos, mas eu resolvi, com minha companheira da época, a Aline ir para a Índia viver uma experiência monástica.

FCEF – Sim, esse seu lado místico e que te levou a outros caminhos.

CB – Exato. Foi um caminho paralelo. Eu fui meio que deixando um pouco a parte artística. Cheguei até me decidir a ser monge. Tanto na Índia, quanto em 1994, quando fui para a Itália. Fiquei um ano em Assis e tive a experiência de noviciado franciscano. Foi uma experiência muito forte que nunca saiu de mim. Entendi que minha missão não era largar o teatro, a vida artística, a minha vocação verdadeira e sim transmitir aquele testemunho de vida para as pessoas. Foi quando eu montei o São Francisco que ficou 12 anos em cartaz. Apresentei inclusive em Assis e foi uma emoção muito grande. Esse espetáculo foi muito importante. Mexeu com muitas pessoas que tiveram inclusive suas vidas modificadas por ele. Eu ajudei na implantação de uma congregação que se chama Toca de Assis. Divulgava a obra no espetáculo e hoje eles estão espalhados por muitos lugares. Também estive na Turquia onde me especializei nas danças sagradas e vivi em um mosteiro. Isso foi pouco antes de montar o novo espetáculo dos Dzi. É uma dicotomia isso. Eles me tiram do ar, me jogam nesses lugares ermos e eu volto com novas ideias. Nesse sentido sou um camaleão.

FCEF – Ciro, outros projetos além de manter o espetáculo com os Dzi?

CB – Sim, claro. Um deles é esse meu estúdio aqui em São Paulo, o Arte-se. Estou morando agora em São Paulo e a partir de 2017 a ideia é transformar isso aqui em um espaço Dzi. Um espaço cultural onde a gente dê aulas, os meninos possam trabalhar junto também. Eu sou muito de agregar. Alguma fraternidade tem que estar acontecendo, senão não faz sentido para mim. No espetáculo dos Dzi, aquele “Só o amor constrói”, que falo no final é muito verdadeiro.
Outro projeto é uma série, em várias temporadas, contando a história dos Dzi, que estamos começando a elaborar, em conjunto com o Renê Belmonte, um ótimo roteirista. Estamos pensando na Netflix. Esse é um projeto do Bruno Gissoni. Logo que entrou nos Dzi ele falou: você precisa fazer um filme.
Também penso em uma companhia. Estou correndo atrás de apoio para manter os meninos como companhia. Todos contratados, sem depender de bilheteria. Eu vejo outras coisas nesse elenco atual, além dos Dzi. Montar solos de dança, outros espetáculos. Formar uma companhia com esse elenco seria maravilhoso.

FCEF – E a nossa música, como você vê os artistas novos surgindo, a MPB se renovando cada vez mais?

CB – Bom, eu sou muito exigente. Principalmente por ter convivido com os maiores. Eu morei com Gal Costa por dois anos. Convivi com Elis Regina, com o Lennie Dale, que sabia demais de música. Ele me botava aqueles fones de ouvido e me fazia escutar o ritmo. Eu penso que esses artistas que vêm surgindo ultimamente, como o Filipe – mas o Filipe eu acho que é um caso à parte –… Tem muita gente, o Johnny Hooker, o Lineker, que apareceram, mas o Filipe, a primeira vez que eu escutei, eu me apaixonei. Que voz é essa? O que é isso? É um susto! Não demorou muito ele apareceu no Jô… Eu fiquei assim… “Nossa, é gaúcho! Só podia ser” (risos). O Filipe é um cantor. Ele não é um acontecimento, um evento, como muitos que estão por aí são. E também compositor da melhor qualidade. Quem faz minha cabeça na MPB? Elis, que escuto todo dia, como se ela estivesse lançando ontem os CDs dela e os de hoje, quem faz minha cabeça é o Filipe Catto e a Maria Rita. Eu vejo tudo que é novo, vou assisti-los, mas nada me arrepia no sentido musical, técnico. Os que me arrepiam são Filipe Catto e Maria Rita.

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FCEF – Ciro, para encerrar essa nossa conversa incrível, queria que você falasse um pouco sobre esse momento estranho e de retrocesso que estamos vivendo. Como sobreviver a isso?

CB – Estamos vivendo um momento de aridez, né?! E a contracultura é a única coisa que pode salvar esse momento. Ela tem que ser retomada. Estes artistas novos têm que se mover. Manifestemo-nos, antropofagicamente na geleia geral brasileira! Arregacem as mangas! A arte é transformadora porque ela atinge o âmago. Eu não acredito em revolução política porque ela não atinge o âmago. As grandes revoluções, que realmente mudaram, foram Mahathma Gandhi, porque atingem o âmago. E a arte tem esse poder. Nós estamos vivendo um momento incrível. Ao mesmo tempo que está esse caos, esse fundamentalismo religioso, político, sexual, essa “democratura”, nós temos que agir. Eu penso em fundar um movimento chamado retaguarda. Uma trincheira cultural para preservar a vanguarda perdida, a contracultura. É do caos que sempre surgiram os grandes movimentos da contracultura. Estamos vivendo isso agora no Brasil. Não dá para ir para o palco e cantar uma “coisinha”. Canta, mas fala também! Temos esse compromisso, essa obrigação. Não dá para ir para o palco pelo simples prazer de enaltecer seu ego, tem que falar mesmo. Assumir essa militância.

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Ciro e Bruno Gissoni no espetáculo “Bandália”

Notas:

  • O espetáculo dos Dzi Croquettes volta ao Teatro Augusta em janeiro e fevereiro de 2017.
  • Curtam a página do estúdio de Ciro Barcelos no Facebook para saber da novidades

Estúdio Arte-se

  • Assistam ao documentário sobre os Dzi Croquettes

Documentário Dzi Croquettes

  • Todas as fotos postadas são do arquivo pessoal de Ciro Barcelos

3 Comments

  1. CIRO BARCELOS !!!!! Excelente entrevista , na qual podemos apreciar a grandeza , a inteligência e o imenso talento de Ciro Barcelos !!!!
    Amo e admiro esse grande artista ! ❤ ❤ ❤

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