Um milhão de novas palavras: A pátria saqueada

A  PÁTRIA SAQUEADA

Brasil – DF, noite de 17 de Abril de 2016, Sessão Plenária da Câmara de Deputados palco oficial da História Política do País. No recinto, Deputados e Deputadas Federais se amontoavam à espera do sinal a ser feito pelo Presidente da Câmara, Eduardo Cunha para o início dos trabalhos. A movimentação era intensa porque eles haveriam de declinar no microfone, em um púlpito montado no corredor central da Sala de Sessões, o voto contra ou a favor da abertura do processo de impeachment da Presidente Dilma Roussef, a qual, segundo o relatório do Deputado Jovair Arantes, teria efetuado as chamadas “pedaladas fiscais” e assim incorrido na prática de crime de responsabilidade.

Do lado de fora da Câmara, sob um céu já escuro, no verde gramado, um muro metálico que fora construído em menos de uma semana sob o argumento de evitar confrontos entre os populares que, divididos em grupos contra e favor do impeachment, lá se encontravam acampados para acompanhar a referida Sessão.

Pelo país afora, dentro e fora dos lares, nos bares, nas ruas, milhões de olhos fixos em centenas de milhares de aparelhos de TV e de computadores sintonizados nos canais que haveriam de transmitir esse evento. Em algumas cabeças muitas dúvidas; em outras, muitas certezas.

O país estava, assim, a postos para exibir a fratura que expunha todas as veias do seu coração. Porém, num canto qualquer da cabeça de cada um, talvez fios de esperança estivessem sendo tecidos para ver uma manifestação cívica pelo SIM ou pelo NÃO propagada nos alto-falantes da Câmara quando os Deputados, em alto e bom tom, pronunciassem o seu voto.

Para aqueles brasileiros já tomados pela desconfiança em relação aos acontecimentos que desde o início de março, especialmente, vinham minando a estabilidade institucional do país, o fio de esperança representava repor a democracia sobre os trilhos. Era preciso cultivar alguma ilusão para, pelo menos, acompanhar o desenrolar dos fatos. Era preciso dar vida aos versos do Hino Nacional e não fugir à luta.  Para aqueles que enxergavam esses acontecimentos como parte do jogo democrático e uma necessidade de ajuste de posturas, a esperança consistia em encontrar na Câmara dos Deputados uma validação honrosa do que até ali se tinha feito.

Enganaram-se todos, embora nem todos tenham, ainda, a consciência disso!

Iniciada a Sessão, os brasileiros começaram a assistir a um desfile de caras e vozes dos mais diferentes timbres que faziam ressoar no microfone a essência carcomida de uns e o agonizante sopro de outros. Algumas dessas caras eram bem conhecidas, outras nem tanto, mas isso pouco diferença fez para apreender o real sentido dessa reunião plenária. O fundamento do voto declinado por uma assustadora maioria foi um só: um ponto fora da curva tal como tudo o que se fez antes e que culminou nessa Sessão.

Antes do SIM ou do NÃO que identificava a posição adotada pelo Deputado votante, as palavras: família e Deus entraram na cena política brasileira. No apelo à família como razão do voto, cada boca em movimento arrotava o seu DNA; no apelo a Deus, pretendia-se abençoar os eleitores. Breve, a diversidade do país que a Câmara supostamente representava cedera lugar a discurso quase hegemônico em que as noções de bem público, cidadania, sociedade civil, movimentos sociais e o objeto mesmo do processo foram evacuadas, deixando no ar uma democracia mal cheirosa.

Quanta contradição! Nas ruas, a população dividida; na Câmara Federal um coro em família, sob a benção de dois Senhores: um deles transcendental; um outro mortal, de carne e osso e sem coração chamado Eduardo Cunha.

Por alguns desmascarado, qualificado como ladrão, corrupto, gângster, conspirador, etc, ele se manteve firme no seu trono de Presidente da Casa Legislativa como se nada nem ninguém pudesse alcançá-lo. Pior, não só se manteve como dava e dá a impressão de que vai ascender!

Outros aspectos que delinearam e permearam o ambiente podem, igualmente, merecer uma análise e redundar no repúdio ao espetáculo vergonhoso que se desenrolou sob os olhos do país e do mundo. As faixas, as placas, os sussurros, os “fiufiu” exaltadores da mulher objeto de cobiça de muitos “pais de família”, etc, etc. Mas, para não perder o foco da ligação umbilical entre economia e política no mundo contemporâneo, com a primeira se sobrepondo à moral que a segunda comporta, reduzi à família e à benção divina as “virtudes viciadas” que foram mencionadas pela maioria dos Deputados. Sem dúvida, o horror dessa noite soou mais alto do que o grito de quem quis dela se afastar em busca de alguma luz.

Diante de tudo isso, penso em Aristóteles nos soprando algo aos ouvidos: a lógica em virtude da qual se conclui que o conteúdo segue a forma e que o esperado evento em prol da democracia do dia 17 de abril constituiu-se na verdade na imagem distorcida dela. Nesse dia não vivenciamos apenas um golpe, mas o começo da pilhagem do país com tudo o mais que acompanha o riso perverso de saqueadores.

Pelo andar da carruagem, portos, poços e cofres brasileiros vão muito rapidamente passar por uma profunda raspagem dos seus valores e, nesse meio tempo, enquanto alguns estiverem esperando de boca aberta pelo corpo de Cristo ou pelas gotas bentas, o nosso estômago se embrulhará nele próprio pela fome: a de comida e a de uma outra moral, até que alguma ideia de democracia possa, de novo, nutrir o nosso espírito.

A revolta generalizada emerge dos confins da minha mente como um ato natural de defesa e quiçá necessário para afastar esses saqueadores mas isso não nos assegura uma mudança para melhor, isso dá a certeza de sacrifícios no presente, torna ainda mais incerto o futuro e rapidamente pode nos transformar numa Pátria ensangüentada, com poucos pedaços para se recompor.

Apego-me, então, a Paulo Freire para quem ter esperança no Brasil já é em si mesmo um ato revolucionário.

Texto de Maria Betânia Silva

 

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